sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

Agosto Fechado

A dúvida da própria culpa de uma mulher oprimida pelo machismo e violência doméstica. Viva o feminismo!

Certamente, um dos meus top favoritos.

Originalmente publicado em 4 de setembro de 2012.



            Ela andava pra cima e pra baixo pelo apartamento. “Ele tá chegando, ele tá chegando.” Olhava nervosamente para a panela, cuidando pra que a comida não ficasse fria. O problema é que se demorasse demais com o fogo ligado, o cozido ficaria seco. Mais um motivo pra levar pancada. E duas noites seguidas ela não aguentaria. O jeito era ficar na janela esperando algum sinal da chegada do marido, “quando ele estiver chegando eu acendo o fogo.” Mas a agonia era demais. Ela não parava com o esfregar de mãos, circulava pelo apartamento. Ajudava a diminuir a sensação de tensão, as palpitações, a falta de ar que sentia.
            Puxou a cadeira próximo à janela e ligou a televisão. Duas horas da manhã, passava um filme de terror. “Não, cruz-credo, não quero ver isso não”, e deu uma risada nervosa da situação em que se encontrava. “Já basta minha vida, chega de terror.” Foi mudando de canal, até parar num programa evangélico. “Talvez isso me acalme um pouco”, pensou. “Talvez ele não apareça em casa hoje. Talvez desmaie pela rua de bêbado, caia e seja atropelado.” Sentiu um arrepio ao pensar nisso e fez o sinal da cruz, como que para afastar o pensamento.
            Na TV, um discurso sobre o martírio, oferecer a outra face ante as adversidades. É o que ela tem feito desde pouco antes do casamento. Foi o que ela fez ontem, enquanto ela apanhava no chão tentando engolir o choro para não irritá-lo mais, se é que ele tinha algum motivo pelo qual ficar daquele jeito. A parte do estupro era o que menos a incomodava: a dor psicológica não se comparava à dor física. E ela até torcia para que o estupro acontecesse: pelo menos, a frustração dele acabaria e ela não apanharia mais, o que geralmente não acontecia. E hoje, que ela ainda se recuperava dos pontapés, socos e cintadas, ele anuncia que iria sair mais uma vez pra beber. O desespero quase fazia o coração escapulir do peito. “Dar a outra face.” Mas e acriança na barriga dela, como é que ficava? “Não vai dar, não vai dar.” O desespero que se abateu nela nesse instante, pensando no bem dos dois, fez com que ela desse um salto. Ela ouvia perfeitamente as batidas do coração. Entrou num estado de lucidez acima do normal e decidiu correr para o quarto. Tirou a mala de cima do guarda-roupa e começou a colocar o mínimo possível para que pudesse ficar na casa da mãe. A vergonha de contar o que acontecia para a mãe tornou-se algo mínimo pra ela, ainda que presente, mas não dava mais. Agora ela teria que finalmente tomar uma atitude: contar pra ela, contar pra polícia, contar até para o jornal se fosse preciso, mas ali ela não ficaria mais. Foi até a janela, e arregalou os olhos ao ver ele chegando na portaria. Começou a suar em bicas no mesmo instante.
            Olhou para os lados sem saber o que fazer. “Se ele me pega de malas em mãos, tô morta! Pensa, pensa!” Correu até a porta, ficou olhando pra ela, teve uma ideia: ficar na escuridão, próxima à porta. Destarrachou a lampada do bocal da sala de entrada e do corredor e ficou ali, do lado da porta, torcendo pra que ele estivesse bêbado. Como ela sempre tinha que esperar ele acordado quando ele saía (mais um motivo para ele começar a agredi-la), achou que talvez ele fosse procurá-la no quarto. Ouviu barulho na porta, e lembrou-se: “a chave”! A chave estava pendurada na porta do lado de dentro! Deu um pulo, tentou puxar a chave, engatada! Girou-a rápido e a puxou no exato momento que ele abria a porta. O coração parecia um tambor, parecia que o prédio inteiro podia ouvir seus batimentos. Foi quando ele entrou. Passou tão próximo que ela conseguiu até descobrir que ele andou tomando conhaque. Ele fechou a porta, tateou o interruptor e praguejou porque não conseguiu acender a lampada. Tomou o caminho do corredor para o quarto, gritando o nome dela na voz arrastada típica dos ébrios. “Isaura! Isaura, tá dormindo por quê? E por que não trocou essa porra dessa lampada?” Foi então que, antes dele chegar ao quarto para que ela pudesse correr para fora de casa, ele tropeçou no tapete e caiu por cima mesa de centro, de vidro. Ela titubeou, esperou alguns momentos e, pé ante pé, botou a chave na fechadura, girou-a e abriu a porta, o suficiente para que a luz do corredor de fora iluminasse lá dentro. Ele não levantava. De onde estava, teve a impressão de ver sangue sobre o tapete.
            Largou a mala do lado de fora, entrou, acendeu a luz do banheiro e olhou para a triste figura do marido largada no chão, sangrando. Correu para o telefone, ligou para a mãe e pediu ajuda. “Mãe, liga para a polícia, para os bombeiros, por favor! Aconteceu um acidente com o Carlos!” Largou o telefone, andava novamente de um lado para o outro, com as mãos na boca, unhas nos dentes, e chorava, chorava. Até ouvir um suspiro vindo dele. Teve a certeza de que, naquele momento, ele havia morrido, mas não verificou.
           Algum tempo se passou até a ambulância chegar e, nesse meio tempo, não parava de pensar se o que aconteceu foi culpa dela ou não. “Foi planejado? Não foi planejado? Foi planejado?” repetia ela pra si mesma, mão ainda na boca, unhas ainda nos dentes, enquanto contava mentalmente as pétalas da margarida de plástico abandonada ao chão, costumeiramente dentro do vaso sobre a mesa de centro. Ainda o amava, e precisava dele para ajudar a criar o bebê por vir, mas…
            Quando ouviu as sirenes, lembrou da panela com o cozido, e foi verificar se a chama do fogão estava acesa. Não estava.
            Sentou na cadeira próxima à janela e, exausta, mirava a direção da porta, esperando o momento dos bombeiros entrarem.

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