terça-feira, 1 de abril de 2014

Gazeta

          Austero – que, pra falar corretamente, nem era tão austero assim; na verdade, era até bem romântico – queria se apaixonar. Mas não queria se apaixonar por uma paixão ordinária: queria sentir uma paixão de meninice, daquelas que fazem o peito arfar. A qual, pensava ele, era difícil de voltar a ocorrer. Nos seus vinte e poucos anos, idade de calças longas, de cremes de barbear e de visitas a botequins (se bem que, no caso dos botequins, não os frequentava muito; e, quando o fazia, não era de se demorar), não tinha lá muitas esperanças de que isso pudesse ocorrer novamente. A classificação comum que seus colegas lhe davam era a de “bobo”, pra dizer o mínimo.
          Vai que, num dia qualquer, Austero, lendo a Gazeta Vespertina, deu de olhos em um anúncio de classificados:

          “Procuro por paixão à primeira vista. Candidato escrever para o jornal.
          Sonhadora.”

          Estava fisgado. Correu terminar seu café e, a caminho do serviço, tratou de parar ao setor de classificados do jornal. Precisava desesperadamente conhecer a tal da Sonhadora. Porém, o funcionário lembrou-lhe de que era preciso escrever, e não perguntar. O que lhe fez lembrar de que estava preso à maldita malha burocrática do país. Às pressas, pois estava atrasado, replicou tão somente:

          “Não precisa mais procurar: acabou de encontrá-la em minha pessoa.
          Com carinho,
          Outro Sonhador.”

          Tratou de anexar seu endereço para que ela lhe escrevesse, e partiu para o emprego.

          Depois de uma espera de alguns poucos dias, cheios de angústia, o funcionário dos Correios veio lhe bater à porta. Lá estava a carta tão esperada, com apenas alguns dizeres: Joelma, e o número de seu telefone. Telefone esse ao qual ficou grudado por um par de horas. Ligaria? E se ligasse, o que dizer? Inflou-se de uma coragem extrema e ligou (antes não o tivesse feito, pensou ele alguns dias mais tarde, mas fez bem em fazê-lo, como poderá se verificar mais adiante).
          A conversa se desenvolveu mais tranquila do que imaginara. Em poucos minutos, marcaram de se encontrar em um restaurante da moda no dia seguinte.
          E assim foi. Encontraram-se, apaixonaram-se (supôs ele, na ocasião), entregaram-se.
          Acordou no dia seguinte no apartamento dela, esbaforido, pois ainda era sexta-feira, e céus, estava atrasado para o trabalho. Despediram-se, os dois sorrindo, ele dizendo que iria lhe ligar para se encontrarem novamente.
          Encaminhou-se ao escritório sorrindo, assobiando, a passos largos. Todos na repartição viram uma aura de felicidade emanando dele. “Aí tem coisa!”, chegou a comentar um cidadão. E tinha. Mal conseguiu fazer algo no serviço: a principal atração do local era o relógio. Contou os minutos para partir dali até sua casa. Chegando lá, decidiu não ligar: iria fazer uma surpresa. Decidiu passar em casa de Joelma sem anúncio por telefone. Comprou um buquê de rosas no caminho. “Como ela vai ficar surpresa!”, ele pensou. “Como ela irá se derreter toda!”, falou de si par si.
          “Como você é sem-vergonha!”, berrou ao ver Joelma, sua mais nova paixão, nos braços de outro, que não os seus, bem ali, na frente de sua casa. Joelma, com um ar de muita dignidade, lhe empinou o nariz e, de braços dados com o rapaz de goma no cabelo e bigodes finos, foram entrando no apartamento sem lhe dar a mínima satisfação.
          Nessa noite, Austero se demorou no bar. Bebeu, fez papelão, berrava que a felicidade não existia, chorou. “Outro”, pensou o dono do bar, sem dar muita bola para o frangote, morto em sua dignidade.
          Acordou em casa, trajando ainda camisa e gravata. E lembrou da noite anterior. Perguntava-se o que teria acontecido de errado: o que fez de errado? Ela não gostara dele? Por um acidente de grafia, o moço dos classificados teria deixado ”paixão” no singular e não no plural? E assim se passou o fim de semana.
          Não precisou muito para que os colegas de emprego percebessem que algo de muito ruim havia acontecido a Austero. Parecia um autômato. Depois de alguns dias, ele era uma criatura de dar dó: barba por fazer, com o visual relaxado, arrastava-se por entre os colegas. Parecia que tinha chumbo nas calças. Candinha também percebeu; apiedou-se dele e, na hora do almoço, chamou-o para tomar um café mais tarde. Ele, alheio a tudo, demorou para perceber o convite, mas acabou por aceitá-lo. Horas mais tarde, foram para o café.
          Não é preciso muita imaginação a partir daí. Os cafés deram lugar aos almoços, jantares, namoro, noivado e, finalmente (ufa!), casório. Filhos, netos e um bisneto por vir. E assim passaram a vida, juntos e amando-se um ao outro.
          Nalgum dia, no passado, durante essa trajetória juntos, Austero me confessou que chegou a ver Joelma somente mais uma vez na vida. Ela caminhava sozinha pela calçada, e não o percebeu – ou assim o fez pensar.  Ele, num sentido primitivo de vingança, ao vê-la desacompanhada, pensou em desfilar com sua recente esposa aos olhos dela: durou poucos momentos. Achou que não seria justo expor a companheira dessa maneira, de modo a fazer um acinte à outra. Apenas atravessou a rua e a deixou (Joelma, é claro) para trás. Para nunca mais. Candinha nunca soube desse episódio.
          Nesse dia, soube que ligar para a Joelma, no final das contas, foi a decisão mais acertada de sua existência. Dormiu feliz, bem feliz.
          Domingo passado, Austero teve gripe e ficou de cama. Candinha, sabendo como é Austero, foi lhe preparar uma sopa de cebola quentinha para entregar-lhe na cama. Ele agradeceu a ela com um sorriso, não era preciso dizer o quanto ele apreciava o cuidado que ela tinha para com ele. Os dois o sabiam.
          - Sabe de uma coisa, Candinha? – disse Austero.
          - Sei do quê? – respondeu.
          - Acho que amores como o nosso não se encontram em Gazetas.
          Candinha sorriu.

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