sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

360 Graus

Originalmente publicado em 15 de dezembro de 2011.



Percival vivia fodido.
Acordou um dia desses e estava resolvido: iria se matar. Pensou nisso durante toda a semana. Minto: esse pensamento lhe ocorria durante muito tempo. Tanto tempo que não sabia dizer quando lhe ocorreu pela primeira vez. Talvez dois anos antes, quando descobriu que sua mulher lhe traía. Bem, um pouco após isso. Seu primeiro pensamento foi matá-la. Mas não tinha culhão pra isso. Talvez por essa razão ele não conseguira sua promoção no emprego – tinha para si que era ele quem fazia a empresa funcionar, mas não reconheciam o seu valor. Dependia dessa promoção: os custos da separação e a partilha de bens deixou-o com uma mão na frente e outra atrás. Por isso caiu no álcool. O que o fez dirigir bêbado até sua casa, ou quase até lá. Pois acertou certeira porrada na traseira de um caminhão da Antarctica. A-N-T-A-R-C-T-I-C-A!!! É claro que ele não pagava seguro: como poderia? Quase não tinha para a gasolina. Teve que fazer um empréstimo no banco, depois de muito choro e conversas com o gerente, para poder arcar com as dívidas. Deixou a casa como garantia. E adivinhe? Ordem de despejo.
Percival vivia fodido.
E se deixou ficar em casa durante toda a semana. Suas atividades nesse tempo eram: televisão, leitura da ordem de despejo, ir até o posto de conveniência comprar uísque e pizza pronta e arremessar tudo o que tinha à mão em direção a um pôster dele com sua ex-esposa, que ficava bem no meio da sala. Arremessou mamão, chinelas, um gato de cerâmica, pizza, almofadas, garrafas (vazias), entre várias outras coisas. O triste é que, da distância onde estava, meio de lado, não acertava um único objeto na direção dela. Quando acertava algo, era na sua própria imagem. Até queria remover o pôster dali, mas um não sei o quê o impedia. Talvez por ser a única imagem, em muito tempo, na qual ele se via sorrindo. Sorrindo com molho de pizza escorrido pela cara.
Às vezes o telefone tocava, mas ele não se dava ao trabalho de atender. Sabia que era do serviço. Já estava com o revólver em mãos. Foi aí que o telefone tocara pela – de acordo com suas contas, mas ele não estava muito certo disso – quadragésima vez. Ele quase o atendeu. Mas, como já havia decidido ir para as cucuias, não faria mal algum a ele se fosse pessoalmente falar (urrar) umas verdades no escritório. Tratou de lavar o rosto, chamar um táxi e se mandar para o serviço.
Mal botou os pés no escritório, seu chefe pediu-lhe que o enviassem à sua sala. Entrou, fechou a porta e desceu a persiana. Antes que seu chefe pudesse completar a pergunta “por onde você andou por todo esse tem…”, ele emendou:
“VÁ TOMAR NO SEU CU!!! NÃO VOLTO MAIS PRA ESSA PORRA!!! E TEM MAIS…”
Despejou quinze minutos de palavrões dos mais variados formatos e cores, profundidades e parentescos, incluindo a mãe e as crianças. Depois do seu desabafo, se acalmou e perguntou se seu chefe queria lhe dizer algo. Sim, queria. Foi por isso que lhe ligaram durante toda a semana. Seu chefe havia pedido transferência para outra cidade, há mais de ano e meio, e finalmenta acataram o seu pedido. Percival seria seu substituto, por indicação dele.
Percival corou de vergonha, depois empalideceu. Pediu várias desculpas para seu ex-chefe, com medo de perder aquela oportunidade. Aliás, para ele já estava perdida. Surpreendeu-se quando seu desafeto disse que, por questões práticas, não retiraria a sua indicação, pois isso tomaria tempo demais dele e poderia fazer com que ele se arrastasse por um bom tempo a mais naquela cidade, e isso era tudo o que ele não queria. E deixou claro que, apesar daquela explosão de raiva, ele compreendia como Percival se sentia. Era duro passar por tudo o que ele passara, estava compadecido da sua situação.
Depois de muito se desculpar pelos desaforos (muito mesmo), Percival conseguiu mais aquele dia de folga. Poderia voltar na segunda, que ele aproveitasse aquele fim de semana para colocar as coisas em ordem antes de assumir sua nova função. Saiu do escritório com um sorriso arreganhado no rosto. A vida não parecia mais tão ruim assim pra ele. Não mesmo. Muito pelo contrário: viu aquela oportunidade como a solução imediata para os seus problemas. Poderia recuperar a casa! Pagaria seu empréstimo! Pararia de pegar táxi, teria seu próprio carro novamente! Ficou tão feliz por algo de bom ter finalmente acontecido na vida dele depois de tanto tempo que teve uma ideia: como merda nunca acontece sozinha, pode ser que o contrário também seja verdade. Resolveu tentar. Entrou no café logo ao lado da firma, onde trabalhava aquela garçonete linda. Todos do escritório diziam que ela ficava de olho nele, mas que poderia ele fazer? Percival vivia fodido: não tinha ânimo sequer para conversar com ela. Mas agora tinha. Entrou encarando-a, foi direto ao balcão e perguntou com todas as letras se ela gostaria de jantar fora com ele. A princípio ela embasbacou-se, ficou sem reação, mas não demorou muito na resposta: aceitou o convite, sim, claro! Ele marcou para a noite seguinte, às 22 horas, com uma segurança tamanha que ela apenas respondeu “ótimo”. Tascou-lhe um beijo por cima do balcão, virou-se de costas e saiu sem nem olhar para trás.
Um raio de Sol o banhava do lado de fora do café. Saiu assobiando Raindrops Keep Falling On My Head pela calçada – apesar do Sol – , quando encontrou com o amásio de sua ex-mulher. Quase se esbarraram. O amásio estava saindo de uma firma de RH, com o seu currículo em mãos, o que fez com passasse todas as cores do arco-íris pelo seu rosto. E um sorriso de canto de boca enorme – sim, isso é possível – estampou-se na boca de Percival.
- Entregando currículo, hein? – soltou enquanto pensava: “se fodeu, filho da puta! Você e aquela baranga da minha ex-mulher!”
Contornou-o pela calçada, pois, enquanto mudava de cor, o amásio não conseguiu mover um músculo, tanto do rosto como de qualquer parte do sistema motor.
Resolveu ir até o parque. Mas antes, teve a ideia de ir até uma livraria. Lá, comprou uma edição de bolso de Cândido, ou O Inocente, de Voltaire. Sentou na calçada e deixou a tarde passar. Nunca havia dado tanta risada com um livro. Achava até que, mesmo que estivesse lendo Schopenhauer ou Nietzsche, estaria se cagando de rir. Em seguida, pensou na merda que iria fazer. E chorou muito. Chorava e ria, chorava e ria. Até que, depois de tanto chorar e rir, ficou com sono e fome. Decidiu tomar um táxi e se encaminhar para casa.
Sentou-se no banco da frente e pediu para que o taxista desse uma passeada pela beira do mar. Dali, enquanto conversava com o taxista, podia ver o Sol se pondo e sentir a brisa marítima.
Foi num momento de distração do taxista, durante a conversa animada, que aconteceu.  O taxista não viu o caminhão que vinha pela direção contrária. Não houve tempo de nada: o choque foi de frente. Percival não escaparia de um segundo acidente com outro monstrengo daqueles. Os dois morreram na hora.
Era um caminhão de leite da Batavo. E nele estava escrito:
“Leite é Vida”.
Senhoras, senhores, crianças: ISSO é ironia.

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