As luzes estão apagadas, as cortinas cerradas. Tem receio de que o rapaz, alguns anos mais novo, não a ache atraente. Ela mesma não se acha mais. Foi-se o tempo no qual ela tinha o corpinho enxuto. "O casamento e os dois filhos acabaram comigo", pensa. E repete isso para a amiga mais íntima, que sempre faz uma cara de que ela está sendo dura demais consigo. "Nem! Você é uma mulher bonita, pare de falar besteira!", diz a amiga. Mas ela percebe (ou quer perceber) que a amiga fala com um sorriso malicioso, com um arzinho besta. A amiga também é mais nova. "Queria ver é como ela vai ficar daqui a uns seis, sete anos pra frente!", se pega pensando nisso.
"Ele poderia ficar aqui comigo, dormindo, depois de terminarmos. Será que vai ficar? E se ele não ficar?"A insegurança nesse momento preenche todo o quarto, todo cantinho esquecido entre os móveis ao redor parecem estar com a atenção voltada para ela. Finalmente se sente nua, nua e despudorada. "Será que ele está percebendo?", pensa. "Será que ele está notando algo?", pensa. O medo a faz chorar. E se sente feia, presa àquela situação ridícula, enquanto escuta o estranho bufar por cima dela, o hálito impregnado de álcool. Contém a respiração, torcendo para que ele não perceba nada.
"Será que ele está percebendo algo?"
* * *
José está na pinta.
Camiseta listrada em vermelho e branco, as cores do bloco, chapéu de feltro e apito na boca, comandando a bateria. Esse é o momento dele, ali ele é o rei. O ano inteiro se dedicando para fazer a bateria dar show na avenida. Ele quer manter o título e a nota máxima do ano passado. Gesticula o máximo que pode, chama a atenção a seu jeito, para que percebam que quem manda naquele pedaço é dele.
Sua, e como sua! Presta atenção na empolgação do público, sempre um bom medidor para saber se agrada ou não. E, apesar de saber que o trabalho foi bem feito, que não há nada mais que possa ser feito a não ser ditar o ritmo, teme o desastre de algum componente da bateria falhar.
Sua, e como sua! Presta atenção na empolgação do público, sempre um bom medidor para saber se agrada ou não. E, apesar de saber que o trabalho foi bem feito, que não há nada mais que possa ser feito a não ser ditar o ritmo, teme o desastre de algum componente da bateria falhar.
Mas ainda não, e falta pouco para que a escola acabe o desfile. A concentração é total, salvo algumas vezes nas quais ele se pega olhando as cenas protagonizadas pelo povo que cerca a escola.
Um casal de namorados no meio de uma discussão.
Uma criança com fantasia de pirata correndo de lá para cá.
Um ébrio trocando as pernas, numa vontade irresistível de se espatifar pelo chão, porém invencível na arte de conseguir se manter em pé.
Ele apita incessantemente, mas se sem apito estivesse, estaria sorrindo a não poder mais. Com os dentes mais brancos do mundo.
E assim vai ele, marcando o passo, e tentando não se distrair demais com os foliões. Amanhã é quarta-feira, e o resultado vem.
"Não vá errar o pé, José! Não vá errar o pé!"
* * *
Severino não liga muito pro carnaval, não.
Ele fica de guarda em duas portas comerciais durante toda a madrugada, até o amanhecer. Já houve vários roubos na vizinhança, e a vizinhança achou por bem que alguém fosse contratado para ficar de olho por ali. Ele prontamente ofereceu-se. Mas não fica sozinho. Ganhou um companheiro dias atrás, companheiro de quatro patas. É o Marquise.
Do alto da sua cadeira plástica, cedida pelo dono de um bar que ele ajuda a vigiar, fica a ver o movimento dos foliões que vem e vão. Alguns com todo o gás indo pra avenida, outros que só por Deus! Ele não entende como conseguem andar e carregar a garrafa ao mesmo tempo. "Vai ver que, se larga a garrafa, cai!" E solta uma risada com gosto, olhando para o Marquise, a fim de saber se ele concorda. Marquise está encolhido num canto, orelha em pé devido às risadas, mas pouco se movimenta.
Nisso passa um grupo de meninas, algumas de salto na mão, perninhas torneadas. Ele acompanha com a cabeça a trajetória delas, elas cantando e soltando algumas risadas, falando sobre algum causo ou outro que aconteceu na avenida.
Marquise se levanta lentamente, graças à movimentação das foliãs. E enquanto Severino olha para as meninas de saiotes a passar logo à frente dele, comenta com Marquise: "Eita! que essas aí não são de se jogar fora, hein, Marquise?", e se vira para o cão.
O cão, no meio da sua espreguiçada, percebe que está sendo chamado a participar de algo, olha para Severino, abaixa as orelhas no gesto típico de agrado e se põe lado a lado com o amigo.
Quem visse os dois nesse momento juraria que estavam ambos rindo.
* * *
Dessa noite Paulinho não passa.
Ele não percebeu que o Carnaval está quase no fim, e também mal percebeu que começou. Está há três dias dentro de um mocó fumando crack. E também não come, tudo o que consome é água. A família não sabe onde ele está. Ele simplesmente evapora, puf! - e só volta para casa, esquálido e fedendo.
Já quis se internar para tentar largar o hábito, mas não durou quatro dias. Percebeu que não consegue. Assentiu que assim fosse: "sem esperança, só esperando." Criou isso que chama de "trocadilho macabro" como meta a se atingir. E ali se encontra, cachimbo na mão, sentado em um esqueleto de colchão, em meio a um fedor acre de urina, esperando o colega de vício chegar com as pedras que fora buscar, enquanto pulgas e mosquitos lhe picam as carnes.
O colega chega. Fuma uma, duas, três pedras, até perder as contas. Quer mais, mas o corpo não está respondendo. Vai se esvaindo pelo chão, entra em convulsão, é só. Sem tempo de chorar, sem arrependimento, sem um beijo de adeus da mãe ou um abraço do pai. E é só.
Seu colega nem percebe o que acaba de acontecer, e, quando perceber, pode ser que se assuste. Pode ser que sinta até compaixão. Mas vai fumar os tênis daquele ali, de quem não sabe o nome, e nem vai querer saber.
Que alguém chore a morte dele, porque não se sabe quando alguém irá chorar.
Essa quarta-feira será de cinzas para Paulinho.
* * *
Amanhece.
Como numa procissão fúnebre, o silêncio assalta a cidade. Houve morte, mas não se sabe direito de quê.
Alguns irão preparar um café para dois, ainda enrolados em lençóis, sorridentes.
Outros, que levam Carnaval à sério, ainda estarão longe de dormir.
Um cachorro abana o rabo para as meninas, enquanto late para os marmanjos barulhentos na rua. Algumas risadas de aprovação surgirão durante momentos tão distintos, enquanto, desapercebidamente, uma mãe e um pai preocupados procurarão pelo seu bebê.
O dia amanhece, e junto dele um recomeço.
Recomeça o Ano-Novo sob o Cruzeiro do Sul.
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