sábado, 25 de abril de 2015

Papo Leve

   Algures, um senhor corpulento sentado debaixo duma árvore, suando e conversando ao celular:
     - ...dormindo direito mais. Pois é, rapaz. Ando com a pressão alterada. É daquela que cai e sobe, sabe? Esqueci o nome. Aham. Ah, mas eu parei, agora ando comendo tudo amargo. Acelga, jiló... Jiló sem molho mesmo, cozidinho. Ando comendo toda noite. Ô gosto ruim aquilo, meu! Num desce direito, não. (Pausa) Uhum. Uhum. Queeeee nada, rapaz! Já fui! Falou em entrar na faca! Me passou uma porrada de medicamento pra controlar, sabe? Não, não gasto muito não, até que tá baratinho. Num eu pago 6, 10 reais. Mas eu esqueço de tomar a praga do remédio, quando vou ver já tô ruim de novo, ah, vontade jogar fora tudo aquela merda! Uhum, já sabe sim, fica preocupada, né? Fica em cima, anda ligando direto pra saber como ando, tadinha! Veio aqui na sexta, ficou até domingo, mas falei pra ela, ela me viu comendo jiló e tudo mais... Mas acho que vou ter que entrar na faca mesmo. Sim, pro coração. Ele disse que recupera rápido. Meu Jesus, tô com um dinheirinho na conta, mas vai tudo, sabe? Dá uma pena de gastar... Eu querendo trocar essa nojeira desse carro véio, mas vou fazer o quê, né? Morto eu não ando mais nem nessa nojeira. Melhor  marcar essa bosta dessa cirurgia logo e ver no que dá. Não vou ficar comendo jiló sem molho pro resto da vida!
     Pequena pausa depois de um "ai, ai!" precedido de suspiro:
     - E a tua diabetes, como tá?

quinta-feira, 16 de outubro de 2014

+1

Tem uma menininha aqui em casa chamada Sophie que vive preocupada com datas comemorativas: quando vai ser a Páscoa, o Natal, o Dia das Crianças e, claro, seu aniversário.
Vez ou outra ela me aparece com essas perguntas:
- Pecão, quanto falta pro Natal?
- Dois meses.
Como não compreende ainda a passagem do tempo, ela me pergunta quantos dias são 2 meses:
- Uns 60 dias.
- TUDO IIIIIIISSOOOOOOOO?
É, tudo isso.

Semana passada ela me perguntou do aniversário:
- Ih, Sossô, aniversário agora só no ano que vem.
- Ah, que chaaaatooo!
E emendou:
- Pecão, a gente cresce só quando faz aniversário, tudo de uma vez?
Expliquei que não, que a gente não para de crescer, toda hora crescemos,  até uma certa idade: dizem que depois até diminuímos.
Ela ficou razoavelmente satisfeita com a explicação. Eu, nem tanto.

É claro que ela queria saber sobre o tamanho, a altura. Mas não necessariamente paramos de crescer, não, Sossô. Pelo menos enquanto queremos. Um exemplo: antes você gostava de Galinha Pintadinha, hoje de Monster High. A Galinha já não te satisfaz. Já pensou gostar de Galinha Pintadinha pro resto da vida? - se bem que, desde que me lembro, gosto do Chaves, mas isso não vem ao caso. Bom, pode bem ser que você goste de ambos pelo resto da vida.
Caramba, complicado explicar. Vou dar outro exemplo.
Você sempre pergunta se, quando a gente come semente de fruta, nasce um pezinho da fruta na nossa barriga. E eu te digo que não, que quando comemos a semente ela sai da nossa "pança gorda" pelo jeito natural, como sai todo o resto. Respondo assim para você perder o receio de comer melancia - e, claro, não me dar ao trabalho de tirar semente por semente. Mas, mais alguns anos pra frente, você terá noção de que era uma resposta simplista. Veja: os passarinhos comem algumas sementes e, depois de passarem pelo processo digestivo das aves, as sementes brotam por aí, crescendo assim as plantas. Mas pra você entender isso precisará antes entender como funciona o processo digestivo das aves, o sistema reprodutor das plantas, suas táticas para que atraiam os pássaros a comerem seus frutos, et cetera, et cetera. A ideia que passo agora para você um dia não caberá em si, e o seu aprendizado se expandirá. Isso também é crescer.
Mais um exemplo, agora comigo: tem algo que as pessoas vestem que são as chamadas "gola V". Usei durante um tempo, e hoje não há força no mundo que me faça vestir algo parecido! Antes eu achava o.k. - como diria o Cavaleiro Sanguinário do Hora de Aventura: "TSC! TSC!" - , agora quando me lembro que usava me vem a frase "teu passado te condena". Mudamos. Mudança também é crescer.
A gente cresce que nem percebe, Sossô. Ontem eu lembrava que era meu aniversário: hoje, se eu não acordasse com um bom dia da sua mãe me lembrando dele, era capaz de lembrar só lá pela tarde.
Crescemos sem parar, é ininterrupto. Aniversários talvez ajudem somente a nos notarmos crescidos, talvez por nos percebermos um ano mais velho e nos leve a uma análise do tempo, da vida.
Não ficarei maior a cada ano (talvez só para os lados, mas eu sou daqueles E.T.s que comem, comem e não engordam): você sim. E ambos cresceremos. Pro-me-to!

Só não expliquei ainda tudo isso pra você porque, depois que eu respondi que a gente cresce a toda hora, você me disse:
- A vó Dina disse que a gente percebe que cresceu quando nossas roupas não cabem mais na gente.
Espantado, concordei. Pois é assim mesmo, inclusive com nossas idéias. Elas não cabem na gente. Algumas abandonamos, outras agregamos e outras tantas incrementamos. Isso é crescer.

Eu nunca explicaria melhor.

terça-feira, 1 de julho de 2014

Atropelo

          Filha chama a mãe de mesa posta sentada com o marido venha comer que tá pronto ao que ela não responde e chama de novo e de novo e nada de ela responder ao que o marido não dá bola porque é típico da filha e ele diz isso à esposa que nos tempos dele era diferente mas essa rapaziada de hoje em dia sabe como é porém a mãe a chama novamente e o silêncio vindo do quarto lhe é gritante e ela diz vou subir para ver porque ela não desce.
          O marido não dá bola vai ver que ela está no celular ela não larga dele diz ele sem ser ouvido para em seguida fazer cara de concordância com o acontecido típico pensa ele e a esposa demora a descer e ele fica curioso por que elas não desceram ainda uma pequena tensão toma conta dele e se assusta com a mulher gritando para ele ela não está em casa onde será que ela foi o marido talvez tenha dado uma saidinha não se aborreça não nega ela aparece mais tarde e ela grita novamente ela fugiu e ele fugiu como?
          Ela fugiu ouve novamente e ele como assim enquanto sobe as escadas e a esposa o encontra no topo da escada ela fugiu tem roupa espalhada pela cama toda e a mala não está no guarda-roupa ele vai até o quarto verificar e realmente as roupas estão espalhadas e a mala não está lá ela só pode ter fugido com aquele sem-vergonha do Lúcio Flávio mas eles vão ver só pensa e pede amor ligue pros pais do Lúcio Flávio e pergunte para onde foram esses dois filhos da puta que eu vou lá na casa dele e a esposa quando eu puser as mãos nas orelhas da Lucinha ela vai ver só uma coisa e saem os dois esbaforidos de casa sem ao menos fechar a porta com tempo suficiente apenas para que ele pegasse a chave do automóvel.
          Alheio a tudo, Mingau apenas abana o rabo, sentindo o aroma dos bifes do jantar repousados nos pratos. Percebendo-se sozinho, leva alguns momentos para decidir subir na mesa e, no momento exato em que prepara o pulo, ouve uma freada e um som surdo de batida.

E corre para ver o que aconteceu.

segunda-feira, 2 de junho de 2014

Colhei

Corre colher o trigo, jovem.
Corre oferecer a tua amada
antes que o tempo de seca
o faça quebradiço entre os dedos.

Porque poderá oferecê-lo nunca
ou com algum tempo de atraso.
E acaso esse seja o caso,
o de tê-la envolvida em seus braços,
maldirá os dias, horas,
todos os lindos
momentos sublimes desperdiçados.

Escrito e esquecido em 11 de setembro de 2013.

terça-feira, 29 de abril de 2014

Cartinha Despretensiosa ao senhor Luciano Huck

          Senhor Luciano Huck, olá.
          Gostaria de começar lhe informando de que não sou seu fã, e que não fui nem nunca o serei.  Acompanho a sua carreira televisiva desde a época do H, programa da Band, e vi sua ascensão à Globo, emissora na qual você apresenta seu atual programa, o Caldeirão do Huck, o qual acho de mau gosto. Primeiro pelo nome: “Caldeirão do Huck”. Meio pretencioso colocar o próprio sobrenome no programa, mas entendo que ele não lhe pertence mais: afinal, “Huck”, agora, é uma marca. E quanto mais promovemos uma marca, mais ela é lembrada, certo? Um dos tantos processos da máquina capitalista. Segundo, seu discurso demagogo: engraçado como você gosta de tudo e de todos. Sua imagem de “rapaz atrapalhado” em campanhas publicitárias. Seu “assistencialismo” entre aspas, pois nunca o vi dar nada de mão beijada a ninguém. “There’s no free lunch”, você deve conhecer essa expressão muito bem, não é? Para que alguém tenha um automóvel e/ou casa reformada, é necessário “pagar uma prenda” que, geralmente, consiste de expor cidadãos brasileiros ao ridículo, como fantasia-los de Michael Jackson, Caubí Peixoto ou Beyoncé e fazê-los imitar o dito artista. Mas vou parar por aí. Minha indignação é outra. Começa com o caso de racismo envolvendo o lateral direito do Barcelona e da seleção brasileira Daniel Alves.
          Vamos por partes:
          Daniel foi genial. Arremessaram-lhe uma banana. Ele curvou-se, descascou a banana, a comeu e cobrou o escanteio. Gênio. Não teria feito melhor.
          Neymar publicou uma foto com a hashtag #somostodosmacacos . Não, não somos. Ninguém é macaco, a não ser os próprios macacos. Mais adiante me aprofundarei sobre o assunto.
          É aí que você aparece.
          Quando vi uma foto sua com a sua esposa, na qual o senhor segura uma banana e posta a dita hashtag, meu estômago embrulhou. “#somostodosmacacos”, você escreveu.
          Com quê direito o fez?
          O senhor sabe o que é andar pelas ruas à pé, sem uma escolta de segurança? O senhor mora em alguma comunidade? O senhor pega algum coletivo, sem ser pra produzir algum quadro de seu programa? O senhor ganha um salário inferior ao de seus colegas de trabalho brancos? O senhor é parado por policiais para averiguarem se porta alguma arma, entorpecentes ou produtos de roubo simplesmente pela cor da sua pele? O senhor já foi chamado de macaco? Já lhe arremessaram bananas?
          O senhor é negro?
          Essa foi, a princípio, a minha indignação. O senhor quis, de forma arbitrária, tomar a dianteira e ser protagonista de uma luta por igualdade que não lhe é de direito. Não lhe é e nem nunca será. “#somostodosmacacos”?
          Não. Não somos. Pelo menos, eu, não. Sou branco. Nunca me olharam desconfiado pela cor da minha pele. Nunca me chamaram de “tição”. Nunca tomei porrada da polícia por ser mais escuro. Nunca me mandaram tomar o elevador de serviço por ser negro. Nesse ponto, eu posso me comparar a você, mas para por aí: a começar, pela nossa conta bancária e, em última (ou primeira) instância, pelos nossos princípios. Nunca saberemos o que é sofrer, na pele, os abusos e humilhações que a população negra do nosso país sofre pelas atitudes desse rascunho de ser humano que é o racista.
          Mas mandá-lo se recolher ao seu lugar nem chega a ser o caso. Acho que você nem tomou nota do que eu quis lhe passar até agora. Sua inteligência, pelo que eu percebi logo depois, não é emocional. Sua inteligência deve ser tão somente aplicada a números. Porque o que me deu realmente nojo da condição humana teve seu andamento algum tempo depois – e ainda nem sei como escrever o que se seguiu. Foi torpe e inumano.
          Eu não sei de onde surgiu a ideia de capitalizar em cima desse ato de racismo. Não sei se Neymar e você trocaram figurinhas. Mas vender camisetas com uma banana estilo Wharrol com a mesma hashtag? No dia seguinte? O senhor não tem vergonha? Ética? Moral? Bom senso? O senhor está sendo mal aconselhado?
          Não. O senhor está em sua plena faculdade mental. O senhor quer dinheiro.
          Camisetas a R$ 69,00? Dividido em 6x? Que público você quer atingir? Pessoas de baixa renda? O favelado? O trabalhador que rala de segunda a segunda, sol a sol, com dificuldade para por comida no prato para ele e sua família? Como vão parcelar isso sem cartão de crédito? Ou as vendas pelo site incluem um carnê como os do Baú da Felicidade? Claro que não! Seu público são brancos de classe média/média alta, pré-universitários/universitários, bombadinhos de malhação, os que saem pra balada beber seus uísques com Red Bull aos fins de semana. Resumindo: seu público, seu auditório de programa. O marketing desse produto hediondo foi direcionado para eles. Basta ver os modelos “macacos” que você usou para propagar seu produto: branco, loira, com óculos hypster. Não há sombra de democratização ou conscientização nessa sua “jogada”.
          O senhor não aprendeu nada com a anterior exploração da tragédia pelo seu site Peixe Urbano. Outro tiro no pé.
          Espero realmente que sua campanha se torne um fracasso. Espero realmente que sua boca cheia de dentes e suas mãos cheias de dedos aprendam um pouco mais sobre ética empresarial.
          Eu não sou macaco. O senhor não é macaco. Os negros não são macacos.
          Não propague essa ideia.

          Desculpe se não lhe mando abraços. Mas estimo melhoras ao seu bom senso.

terça-feira, 1 de abril de 2014

Gazeta

          Austero – que, pra falar corretamente, nem era tão austero assim; na verdade, era até bem romântico – queria se apaixonar. Mas não queria se apaixonar por uma paixão ordinária: queria sentir uma paixão de meninice, daquelas que fazem o peito arfar. A qual, pensava ele, era difícil de voltar a ocorrer. Nos seus vinte e poucos anos, idade de calças longas, de cremes de barbear e de visitas a botequins (se bem que, no caso dos botequins, não os frequentava muito; e, quando o fazia, não era de se demorar), não tinha lá muitas esperanças de que isso pudesse ocorrer novamente. A classificação comum que seus colegas lhe davam era a de “bobo”, pra dizer o mínimo.
          Vai que, num dia qualquer, Austero, lendo a Gazeta Vespertina, deu de olhos em um anúncio de classificados:

          “Procuro por paixão à primeira vista. Candidato escrever para o jornal.
          Sonhadora.”

          Estava fisgado. Correu terminar seu café e, a caminho do serviço, tratou de parar ao setor de classificados do jornal. Precisava desesperadamente conhecer a tal da Sonhadora. Porém, o funcionário lembrou-lhe de que era preciso escrever, e não perguntar. O que lhe fez lembrar de que estava preso à maldita malha burocrática do país. Às pressas, pois estava atrasado, replicou tão somente:

          “Não precisa mais procurar: acabou de encontrá-la em minha pessoa.
          Com carinho,
          Outro Sonhador.”

          Tratou de anexar seu endereço para que ela lhe escrevesse, e partiu para o emprego.

          Depois de uma espera de alguns poucos dias, cheios de angústia, o funcionário dos Correios veio lhe bater à porta. Lá estava a carta tão esperada, com apenas alguns dizeres: Joelma, e o número de seu telefone. Telefone esse ao qual ficou grudado por um par de horas. Ligaria? E se ligasse, o que dizer? Inflou-se de uma coragem extrema e ligou (antes não o tivesse feito, pensou ele alguns dias mais tarde, mas fez bem em fazê-lo, como poderá se verificar mais adiante).
          A conversa se desenvolveu mais tranquila do que imaginara. Em poucos minutos, marcaram de se encontrar em um restaurante da moda no dia seguinte.
          E assim foi. Encontraram-se, apaixonaram-se (supôs ele, na ocasião), entregaram-se.
          Acordou no dia seguinte no apartamento dela, esbaforido, pois ainda era sexta-feira, e céus, estava atrasado para o trabalho. Despediram-se, os dois sorrindo, ele dizendo que iria lhe ligar para se encontrarem novamente.
          Encaminhou-se ao escritório sorrindo, assobiando, a passos largos. Todos na repartição viram uma aura de felicidade emanando dele. “Aí tem coisa!”, chegou a comentar um cidadão. E tinha. Mal conseguiu fazer algo no serviço: a principal atração do local era o relógio. Contou os minutos para partir dali até sua casa. Chegando lá, decidiu não ligar: iria fazer uma surpresa. Decidiu passar em casa de Joelma sem anúncio por telefone. Comprou um buquê de rosas no caminho. “Como ela vai ficar surpresa!”, ele pensou. “Como ela irá se derreter toda!”, falou de si par si.
          “Como você é sem-vergonha!”, berrou ao ver Joelma, sua mais nova paixão, nos braços de outro, que não os seus, bem ali, na frente de sua casa. Joelma, com um ar de muita dignidade, lhe empinou o nariz e, de braços dados com o rapaz de goma no cabelo e bigodes finos, foram entrando no apartamento sem lhe dar a mínima satisfação.
          Nessa noite, Austero se demorou no bar. Bebeu, fez papelão, berrava que a felicidade não existia, chorou. “Outro”, pensou o dono do bar, sem dar muita bola para o frangote, morto em sua dignidade.
          Acordou em casa, trajando ainda camisa e gravata. E lembrou da noite anterior. Perguntava-se o que teria acontecido de errado: o que fez de errado? Ela não gostara dele? Por um acidente de grafia, o moço dos classificados teria deixado ”paixão” no singular e não no plural? E assim se passou o fim de semana.
          Não precisou muito para que os colegas de emprego percebessem que algo de muito ruim havia acontecido a Austero. Parecia um autômato. Depois de alguns dias, ele era uma criatura de dar dó: barba por fazer, com o visual relaxado, arrastava-se por entre os colegas. Parecia que tinha chumbo nas calças. Candinha também percebeu; apiedou-se dele e, na hora do almoço, chamou-o para tomar um café mais tarde. Ele, alheio a tudo, demorou para perceber o convite, mas acabou por aceitá-lo. Horas mais tarde, foram para o café.
          Não é preciso muita imaginação a partir daí. Os cafés deram lugar aos almoços, jantares, namoro, noivado e, finalmente (ufa!), casório. Filhos, netos e um bisneto por vir. E assim passaram a vida, juntos e amando-se um ao outro.
          Nalgum dia, no passado, durante essa trajetória juntos, Austero me confessou que chegou a ver Joelma somente mais uma vez na vida. Ela caminhava sozinha pela calçada, e não o percebeu – ou assim o fez pensar.  Ele, num sentido primitivo de vingança, ao vê-la desacompanhada, pensou em desfilar com sua recente esposa aos olhos dela: durou poucos momentos. Achou que não seria justo expor a companheira dessa maneira, de modo a fazer um acinte à outra. Apenas atravessou a rua e a deixou (Joelma, é claro) para trás. Para nunca mais. Candinha nunca soube desse episódio.
          Nesse dia, soube que ligar para a Joelma, no final das contas, foi a decisão mais acertada de sua existência. Dormiu feliz, bem feliz.
          Domingo passado, Austero teve gripe e ficou de cama. Candinha, sabendo como é Austero, foi lhe preparar uma sopa de cebola quentinha para entregar-lhe na cama. Ele agradeceu a ela com um sorriso, não era preciso dizer o quanto ele apreciava o cuidado que ela tinha para com ele. Os dois o sabiam.
          - Sabe de uma coisa, Candinha? – disse Austero.
          - Sei do quê? – respondeu.
          - Acho que amores como o nosso não se encontram em Gazetas.
          Candinha sorriu.

sábado, 19 de outubro de 2013

Dois Copos

Numa noite chuvosa
De primavera
Sem viv'alma para escutar

Encontrei seus olhos chorosos
A desabafar.

Olhos tristes
e não lhe deixei
Falar e falar.

Olhos tristes
E não lhe deixei
Falar e falar e falar.

Entornamos mais dois copos
E não parei para escutar

A angústia dum'alma
Pronta a desabafar.

Sabia serem dores de amor
E toda tristeza
Que nelas há.

E não lhe deixei
Falar e falar e falar.

Por essa angústia
também bater aqui,
Dentro dum peito a arfar.

Não comecemos um papo
Sem prazo a terminar.